REVISTA EDUCAÇÃO - EDIÇÃO 159 | ||
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Depois de um dia cansativo, Maria Amélia Azevedo Cunha, conhecida pelos alunos como Tia Lia, espera encontrar a paz durante o sono. Porém, um pesadelo com dois monstros cobrando as planilhas de notas mostra que a desilusão e o estresse da professora vão além da sala de aula. Mas eis que um sábio senhor de barbas brancas irrompe na cena e conversa com a professora sobre os medos e as dificuldades enfrentados na vida. Esse homem se identifica como Paulo Freire.
Nascido em 1921, no Recife, o educador Paulo Freire é a inspiração da peça Sobre sonhos e esperança, da Companhia Arte Tangível. As ideias do pensador guiam a protagonista, uma professora do ensino fundamental, em seus momentos de reflexão e mudança. "A educação pode mudar as pessoas; as pessoas podem mudar o mundo", diz o Paulo Freire interpretado por Alexandre Saul. Freire é, sem dúvida, o educador brasileiro mais conhecido no Brasil e no mundo. O fato de haver uma peça que dialoga diretamente com sua obra é mais um indício da importância social crescente da educação, manifesta em especial pelo paradoxo do valor que se atribui ao conhecimento, contrastado com a pouca valorização do professor. A peça já foi assistida por mais de seis mil pessoas em apresentações em teatros e escolas.
Diretora e coautora da peça, escrita em parceria com Thomas Holesgrove, Luciana Saul conheceu Freire e seus pensamentos por intermédio da mãe, a educadora Ana Maria Saul, que trabalhou com ele durante 17 anos na PUC-SP. "Houve um momento em que aliar a prática de nosso grupo no trabalho na periferia ao referencial progressista, democrático e crítico-transformador da obra de Freire se tornou urgente. Assim, escolhemos alguns temas tratados pelo educador para construir o roteiro e a encenação", explica Luciana.
Para escrever Sobre sonhos e esperança, os autores selecionaram trechos e temas de obras de Paulo Freire, além de consultar professores para falar sobre questões inquietantes a respeito da profissão. Por exemplo, as planilhas de notas que aparecem no pesadelo da protagonista e o desânimo frente ao desafio de motivar o aluno foram sugeridos pelos docentes consultados. Um dos grandes desafios foi o cuidado para que os conceitos mencionados fossem apresentados de forma simples, mas não simplista.
Segundo Luciana, educadores que conhecem a obra de Paulo Freire podem assistir ao espetáculo e identificar, por exemplo, uma possibilidade de transformação do trabalho do professor por meio da leitura da realidade. No entanto, há aqueles que não leram o pensador, mas trabalham, ainda que intuitivamente, com sua abordagem da educação. De acordo com a coautora, após assistir à peça esses educadores sentem a necessidade de buscar na obra de Freire as bases para sua prática e outros caminhos possíveis de transformação. "Buscamos apresentar temas importantes que inspirem os espectadores a uma reflexão e transformação de suas práticas, por meio de uma linguagem prazerosa e divertida", comenta.
Entre o pesadelo e a realidade
Na peça, a protagonista acredita que a solução para a pressão sofrida é tirar a licença médica e desaparecer em um transatlântico, mas Paulo Freire intervém e apresenta propostas que irão mudar a maneira como realiza seu trabalho: ensinar com seriedade e alegria, substituindo o arcaico método de memorização mecânica pelo debate e estimulando a participação e o questionamento dos alunos, representados por Melissa (Fernanda Quatorze Voltas) e Jerson (Thomas Holesgrove). A primeira pertence à classe média e sonha em se tornar piloto de avião, desejo reprimido pelo pai, que acredita que a mulher deve apenas casar e ter filhos - se estuda é para ter o mínimo de conhecimento e não parecer ignorante diante do marido. Já Jerson é de classe baixa e trabalha como malabarista nos faróis. Impaciente, sua preocupação na sala de aula se resume ao horário do recreio para poder comer. "Escolhemos duas situações extremas de alunos e famílias de alunos para poder abrir o debate sobre diversos assuntos imbricados nessas situações", conta a diretora, que também interpreta Maria Amélia, ao justificar a construção de personagens um tanto monocórdias.
Além de abordar a relação professor-aluno, caracterizada como uma relação de poder, a peça retrata a reunião de pais e mestres na qual a atitude de Maria Amélia é criticar Jerson sem propor soluções para melhorar seu aprendizado. Por outro lado, o pai de Melissa critica a escola porque acha que a filha aprende muito devagar e acredita que o aprendizado se resume a memorizar o conteúdo cobrado no vestibular. Ou seja, trabalha com visões "clichê" que as partes têm entre si para colocá-las em xeque.
No momento em que a professora reflete sobre a função da escola e do seu trabalho, o personagem de Paulo Freire propõe maior diálogo entre os pais e a instituição para propiciar mudanças e para que se cultive o gosto do aluno pelo aprendizado. Entretanto, como enfatiza a peça, as mudanças não ocorrem de maneira repentina: requerem uma reinvenção da prática - a aliança entre pais, professores, alunos e escola, e a rejeição ao individualismo.
Com base no pensamento de Paulo Freire, a peça defende a necessidade de descobrir o que os alunos sabem, do que gostam e quais são seus sonhos e anseios; ouvir o que pensam e incentivá-los a questionar e a raciocinar. Quando a escola abre espaço para o aluno se expressar, passa a ter maior interesse em aprender e em entender o mundo e a comunidade onde vive. "O que acontece na aula deve ter relação com o que acontece lá fora", diz a professora ao identificar, com a ajuda dos alunos, caminhos eficientes para facilitar o aprendizado.
O espetáculo em debate
No dia em que a reportagem assistiu à peça, ela havia sido apresentada como parte do evento ""II Seminário Web Currículo PUC-SP". Após o término, um debate entre o público (formado por professores, educadores e pedagogos) e os componentes da Arte Tangível trouxe observações relacionadas aos temas abordados pelo espetáculo e os desafios diários enfrentados pelos profissionais de ensino, que afirmaram ter se identificado com a protagonista, do pesadelo à persistência em mudar a forma como o ensino é realizado no país.
A professora de pedagogia da Universidade Federal do Tocantins (UFT) Valdirene Jesus nota que a opressão sofrida pela protagonista é semelhante à que ocorre na região onde trabalha. "É mais cômodo aceitar o sistema do que lutar por algo melhor", destaca. Ela diz que a escola e a educação acabam se tornando instrumentos políticos, pois os funcionários são escolhidos por indicação. "Para os professores, não adianta inovação, porque o momento político pode tirar o cargo", revela. "Então, é preciso acreditar e mudar - e não muda do dia para a noite", completa. Quem também se identificou bastante com o tema apresentado em Sobre sonhos e esperança foi o professor de ciências Elan Barreto, que leciona em uma escola pública de Angra dos Reis. "A gente se vê na peça e ela nos faz voltar à obra de Paulo Freire", comenta.
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